No artigo de hoje iremos abordar o instituto da antecipação da legítima, no entanto, para a maior compreensão acerca desse assunto e para que não haja confusão, antes, esclareceremos alguns pontos relevantes, como por exemplo, o conceito de doação e legítima.
Sabe-se que o Direito Civil, em um de seus papéis de atuação, ocupa-se de regular as relações entre os particulares, estabelecendo determinados limites, sem no entanto, intervir excessivamente;
Ou seja, irá conferir liberdade à atuação desses particulares, mas ao mesmo tempo irá observar eventuais condutas que venham exceder o limite por ele imposto.
Sendo assim, se um indivíduo decide gastar todo o seu patrimônio em vida e não deixar nada para seus herdeiros por acreditar que a construção do que é seu vem de um trabalho árduo poderá fazer isso;
No entanto, o Direito Civil é acionado no momento em que esse mesmo indivíduo age com liberalidade em relação alguns de seus herdeiros em detrimento dos demais, logo, deverá ter um atuação de forma a restringir esse comportamento;
Dessa forma, o patrimônio do autor da herança será dividido em duas partes: a primeira é a legítima, que veremos de forma mais detalhada, e que representa 50% do total; a segunda é a quota disponível (parte que ele, autor, poderá fazer o que bem quiser e entender)
O que é doação?
A doação é uma forma de contrato em que determinado indivíduo irá transferir para outrem bens, direitos ou vantagens sem receber nada em troca, ou seja, o doador dispõe gratuitamente de uma coisa, direito ou assume obrigações, sem uma contraprestação por isso.
Quanto a sua previsão legal, a doação encontra-se no artigo 538 do novo Código Civil que dispõe ser a doação uma espécie de contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere seu patrimônio, bens ou vantagens para o patrimônio de outra.
Vale destacar que são requisitos da doação a intenção, por parte do doador, de doar, bem como a aceitação por parte do donatário, mas este último requisito ainda é ponto divergente na doutrina;
Há doutrinadores que se posicionam no sentido de que a aceitação é uma elemento essencial para caracterização da doação, devendo haver manifestação daquele que irá receber a doação, sob pena de imperfeição do ato
E uma segunda corrente, em sentido contrário, dispondo que não há necessidade dessa manifestação de querer aceitar aquilo que será doado, bastando a intenção de doar por parte do doador para que haja a doação.
O que é Antecipação da Legítima?
Outro aspecto importante diz respeito à ideia de “legítima” que nada mais é do que uma reserva assegurada por lei para os herdeiros necessários do falecido (ascendente, descendente e cônjuge ou companheiro);
Ao falarmos em patrimônio líquido do autor da herança este será composto por duas partes, quais sejam, uma metade disponível que como o próprio nome já sugere permite que ele disponha da forma que bem entender;
E uma outra parte que será chamada de “legítima” (antecipação da legítima), esta por sua vez, será necessariamente destinada aos seus herdeiros necessários e possui previsão legal no artigo 1.846 do Código Civil.
O cálculo dessa “legítima” será feito com base no valor dos bens existentes quando ocorreu a abertura da sucessão (ou seja, a morte), sendo abatida as dívidas, bem como as despesas decorrentes do funeral.
Desse modo, estabelecida uma noção inicial acerca da doação, bem como da legítima passaremos à análise do adiantamento da legítima e suas repercussões no ordenamento jurídico pátrio.
O que é Antecipação da Legítima /Herança?
Com previsão no artigo 544 do Código Civil o adiantamento da herança trata-se das hipóteses de doação de ascendente para o descendente, bem como de um cônjuge para o outro;
Tal doação irá ocasionar o adiantamento, daí o nome “adiantamento da herança”, da parte da herança desse ascendente/cônjuge que é sua por direito.
Ponto a destacar aqui é que talvez você já tenha ouvido a expressão “adiantamento da legítima”, no entanto, com a vigência do novo código civil em 2002 o termo foi alterado;
A disposição anterior era no sentido de que “a doação de pais aos filhos importa em adiantamento da legítima”, ao passo que, o atual dispositivo legal diz que “a doação de ascendente a descendente, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”.
Fato é que apesar da mudança nominal a essência do dispositivo mantem-se inalterada no sentido de que o propósito é a proteção da quota que cabe ao herdeiro por Direito
Vale observar também que antigamente, mais especificamente no artigo 1.171 do Código Civil de 1.916, a antecipação da legítima só se referia à relação existente entre pai e filho;
O legislador ao elaborar o código civil de 2002 sentiu a necessidade de ampliar esse diploma legal realizando o acréscimo dos ascendentes, bem como do cônjuge.
O que é colação?
Ponto importante e que merece ser observado diz respeito à “colação”, ou seja, após o adiantamento da herança os descendentes deverão apresentar os bens, no processo de inventário, que foi recebido na época que o ascendente estava vivo.
Assim, no momento da partilha serão levados em conta o patrimônio total do “de cujus”, incluindo o bem que foi antecipado, para posteriormente realizar a divisão entre os herdeiros; o propósito é evitar que algum herdeira recebe mais ou menos do que realmente lhe é cabível.
A não colação dos bens resulta em sonegação, isso significa que o descendente que não cumpri-la pode vir a perder o direito que possui sobre a coisa, mas atente-se que o ascendente que doou o bem poderá dispensar, se assim quiser, a colação;
É o que se observa da leitura do artigo 2.006 do novo Código Civil ao dispor que “a dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade.”.
Exemplo de antecipação da Legítima
Imagine que João dispõe de um patrimônio de 1 milhão de reis e decide pela compra de dois apartamentos no valor de 250 mil reais, sendo que um dos apartamentos ele irá usar para sua moradia e o outro decide doar para um de seus dois filhos;
Observe que a conduta praticada por João é legal, não há nenhum tipo de óbice e encontra amparo no artigo 544, representando um adiantamento da parte da herança que será cabível ao filho que recebeu o apartamento quando João vier a falecer; temos aqui a hipótese de adiantamento de legítima
Ocorre que sobrevindo a morte de João será aberto o processo de inventário e o filho que recebeu o apartamento deverá mencionar esse bem, é a chamada colação e que tem por propósito trazer isonomia aos herdeiros no momento da partilha.
Sendo assim, para que as legítimas de todos os herdeiros sejam iguais mostra-se necessário trazer o bem à colação, ou seja, realização da conferência dos bens de modo que ninguém receba a mais ou menos daquilo que lhe é garantido por lei.
Por outro lado, se João, com o mesmo patrimônio, tivesse comprado um apartamento de 700 mil reais e doado esse imóvel para um de seus filhos ele teria ultrapassado os 50% previsto em lei que deve ser destinado aos herdeiros necessários;
Assim teríamos uma hipótese de doação inoficiosa, trata-se de uma doação que é nula, não terá validade e possui amparo legal no artigo 549 do Código civil ao dispor que “nula também é a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.”
Da doação entre cônjuges (entendimento jurisprudencial e doutrinário)
No tocante à relação entre cônjuges a doutrina se posiciona no sentido de que poderá haver doação de um cônjuge para o outro desde que o regime de casamento seja o de separação convencional de bens, comunhão parcial, bem como a de participação final nos aquestos.
Em contrapartida, o Superior Tribunal de Justiça entende que é nula a doação nas hipóteses em que o regime de bens for de comunhão universal de bens, uma vez que a nulidade se dá por impossibilidade jurídica do pedido:
“Doação entre cônjuges. Incompatibilidade com o regime da comunhão universal de bens. A doação entre cônjuges, no regime da comunhão universal de bens, é nula, por impossibilidade jurídica do seu objeto” (Superior Tribunal de Justiça, AR 310/PI, 2.ª Seção, Rel. Min. Dias Trindade, j. 26.05.1993, DJ 18.10.1993, p. 21.828).
Outra discussão relevante é se o artigo 544 do Código Civil alcançaria o companheiro, nesse sentido, alguns autores, como por exemplo, Flávio Tartuce se mostram contrários a esta hipótese.
Isto por que o companheiro não é um herdeiro necessário, tanto é que não consta do rol do artigo 1.845 do Código Civil, desse modo, o entendimento é de que não há o que se falar de doação para o companheiro.
No entanto, a tendência é a inclusão do companheiro como herdeiro necessário, uma vez que o Supremo Tribunal Federal já declarou como inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil de 2002 equiparando a união estável ao casamento.
Desse modo, o artigo 1.829 que dispõe acerca da ordem da sucessão legítima é aplicável à entidade familiar “união estável, frente às novas mudanças de interpretação dessas instituições.
Nesse sentido, o STJ:
“salvo expressa disposição de lei, não é vedada a doação entre os conviventes, ainda que o bem integre o patrimônio comum do casal (aquestos), desde que não implique a redução do patrimônio do doador ao ponto de comprometer sua subsistência, tampouco possua caráter inoficioso, contrariando interesses de herdeiros necessários, conforme os arts. 548 e 549 do CC/2002” (STJ, REsp 1.171.488/RS, 4.ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 04.04.2017, DJe 11.05.2017).
O adiantamento de Legítima e suas implicações no ajuste de Quinhão Hereditário nas ações de inventário.
De forma concisa, podemos visualizar que uma das principais repercussões do adiantamento de legítima em um processo de inventário é a questão da realização da colação;
Isto por que, a Administração Pública enquanto interventora nas relações particulares para que excessos sejam evitados criou a colação como forma de assegurar a equidade no momento da partilha de bens;
Assim, o adiantamento de legítima alcança o interesse imediato daquele que anseia pelo recebimento antecipado de parte de sua herança, mas ao mesmo tempo terá ferramentas que irão evitar injustiças de modo que alguém receba a mais ou aquém daquilo que lhe é devido.
SÍNTESE
Dentre os pontos referente ao adiantamento da legítima e suas aplicações legais, merecem destaque os seguintes:
- O adiantamento da legítima é uma espécie de doação de ascendente para descendente, bem como entre cônjuges (artigo 544 do CC/02)
- A doação representa a disposição gratuita de bens, direitos e vantagens de uma pessoa para outrem, sem contraprestação
- Legítima é a parte prevista em lei que necessariamente será destinada aos herdeiros necessários
- Após falecimento do “de cujus” os bens deverão ser colacionados, sob pena de sonegação.
PALAVRAS CHAVES (KEYS CODES): LEGÍTIMA; HERANÇA; DOAÇÃO; HERDEIROS NECESSÁRIOS; CÔNJUGE.
REFERÊNCIAS:
FRANZONI ADVOGADOS. franzoni.adv, 2018. Antecipação da herança para os filhos: É possível?. Disponível em: <https://franzoni.adv.br/antecipar-a-heranca/>
VILAS BOAS ADVOGADOS ASSOCIADOS. escritoriovilasboas, 2020. A doação como antecipação de herança e a obrigatoriedade de colação. Disponível em: <https://www.escritoriovilasboas.com.br/2020/01/26/as-principais-alteracoes-na-colaboracao-premiada-previstas-na-lei-anticrime/>
LEITE RODRIGO. blog.supremotv, 2020. Doação entre ascendentes, descendentes e cônjuges. <Disponível em: https://blog.supremotv.com.br/doacao-entre-ascendentes-descendentes-e-conjuges/>
MARA CLÁUDIA. claudiamaraviegas.jusbrasil, 2019. Doação inoficiosa: doação de ascendente para descendente que ultrapassa a 50% do patrimônio do doador. Disponível em: <https://claudiamaraviegas.jusbrasil.com.br/artigos/769686481/doacao-inoficiosa-doacao-de-ascendente-para-descendente-que-ultrapassa-a-50-do-patrimonio-do-doador>
SILVA SAMARA. netcpa, 2016. Diferenças entre a doação, partilha em vida e o adiantamento da legítima, para fins da incidência do IRPF. Disponível em: <http://www.netcpa.com.br/noticias/ver-noticia.asp?Codigo=33772>
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO. Ibdfam, 2019. Antecipação de herança com doação e posterior colação são temas de artigo da Revista Científica do IBDFAM. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/noticias/7134/Antecipa%C3%A7%C3%A3o+de+heran%C3%A7a+com+doa%C3%A7%C3%A3o+e+posterior+cola%C3%A7%C3%A3o+s%C3%A3o+temas+de+artigo+da+Revista+Cient%C3%ADfica+do+IBDFAM>
SILVEIRA NÉLIO. silveiradias.adv, c2021. Gasto dos pais com filhos maiores pode significar antecipação de legítima. Disponível em: <https://silveiradias.adv.br/gasto-dos-pais-com-filhos-maiores-pode-significar-antecipacao-de-legitima/>